Re-trato
Ali fica o retrato destes dias
Gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida
(Excerto de «Orla Marítima», Ruy Belo)
Em «Outro Retrato», cada obra assume o vestígio de uma narrativa contínua, em que a natureza da matéria é retratada à cadência de sentimentos fragmentados. São edificados nichos de história, que resultam de cápsulas de memória correntes aos estilhaços de tempo.
Uma espécie de corpo em contínua mutação – quando não, uma cabeça afinada a carregar uns óculos –, é repetida sucessivamente, num exercício de exaustão do traço sobre o sentimento em ânsia de libertação. Como se o ato de pintar assumisse a construção do pensamento: animações de imagens mentais a partir do gancho de «melancolia orgânica». A artista num re-trato persistente do outro em si.
O corpo como ferramenta que a artista usa para investigar aquilo que muda em si a partir do que vê-vive, sobre acúmulos de lembranças enlaçados aos lugares imaginários que se cria no retorno às recordações. Afinal, recordar também é fantasiar o passado, torná-lo um conto contínuo mas fragmentado, aqui assistido.
O «Outro Retrato» é a face das faces de uma vida reinventada entre a claridade e a ausência de seu núcleo, escuridão. Rostos congelados no tempo e que, fixos nele, ganham a mobilidade perene. Eis a desmistificação sacra no retrato insistido, insistente.
Exumá-lo para exauri-lo. Chegar a pó que não restos, antes rastros deixados ao longo do caminho.